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Silêncio | Paulo Gallina_

 

Música é a transformação do som desordenado em uma repetição harmônica. A narrativa histórica permite aos viventes a notação de repetições no campo dos comportamentos e das ideias. A música como alegoria histórica talvez seja o mais pertinente pareamento, porque, enquanto a primeira transforma ruído em harmonia, a segunda dá sentido a eventos destituídos de. A história, assim como a música, sugere o porvir ao jogar luz sobre o passado. A série do artista Thiago Navas nomeada Apagamentos/Encobrimentos (2015) destaca a vida na cidade de São Paulo do século XXI esperando contrapô-la a seu espelho do século XIX. Assim como o músico e o historiador, os quais dão ordem ao elaborar um recorte, Thiago explora a relação de sentidos entre o presente e o passado.

Ao tomar fotografias do Militão Augusto de Azevedo (1837-1905) como suporte, o artista incorpora um dos primeiros estudos fotográficos latino-americanos sobre o ambiente urbano à sua cidade reinventada. Afinal, este também é um estudo urbano pioneiro. Ao apagar os prédios que não resistiram ao tempo, Thiago revela o critério de sua ação: o uso continuado. São os prédios vivos, que foram reformados ou restaurados, os que resistem nas reproduções fotográficas do Militão. Como consequência, o artista revela a atuação da história da cidade em seu horizonte ao evidenciar o quanto de esquecimento existe nas ruas do centro de uma metrópole.

No trato da imagem, o céu, a terra e algumas edificações permanecem intocados por Thiago. Nos Apagamentos, a opção por apagar para desenhar reitera a perenidade da paisagem contraposta à efeméride do invento humano. Não à toa, o céu e a terra resistem intactos às lixas do artista. As áreas de transição, que são as edificações citadinas, e as decorrentes intervenções no espaço urbano são parte do léxico do artista. Das imagens produzidas pelo fotógrafo, Thiago incorpora a proporção dos corpos em seus hábitos cotidianos e por sua relação aos prédios.

As ruas fotografadas no século XIX e retrabalhadas pelo artista contemporâneo, muitas delas ainda trilhadas no século XXI, representam também a distância entre o caótico mundo atual e aquele de antes do advento da modernidade. O passado ganha ordem, um tônus musical, em contraposição à intempérie presente. Em tempo, as pessoas ganham força nas imagens e tanto os Apagamentos, quanto os Encobrimentos operam as sutilezas da fotografia sobre seus habitantes. Thiago poderia ter produzido, com sua técnica de desenho, os mesmos cenários e retratos, porém sua intenção é comentar o quanto de invento existe no olhar.

A série Apagamentos/Encobrimentos reúne-se por uma atitude plástica. Ao desenhar com lixa ou tinta sobre as fotografias, o artista procura contrapor passado e presente. Assim como o grafite do lápis arranha a trama do papel, Thiago Navas lixa as imagens nomeadas Apagamentos sem depositar material algum e, assim, o artista cria novamente o espaço branco no papel fotográfico. O resultado esbranquiçado do esfolamento sugere o esquecimento. Como na música, o artista precisa criar silêncios para dar destaque a reflexões sutis sobre a presença e o desaparecimento.

Se o silêncio é onde o som acontece, então o papel branco é onde a imagem se faz. O desenho realizado sem imagem obriga o observador a inventar. Quando o sujeito enxerga palácios ou prédios dentro do papel trabalhado por Thiago Navas, o visitante dá sentido a linhas desgastadas ou às porosidades do papel em tons de cinza. O olhar se inventa ao procurar imagem onde o registro é um gesto. Ao se apropriar e intervir sobre imagens historicamente inseridas na tradição fotográfica brasileira, o artista parece afirmar: lembrar é um gesto, assim como rabiscar. Expõe, assim, a sutil diferença entre pensar o mundo e vivê-lo.

Mais e mais o movimento da mão torna-se delicado, a intensidade de cada apagamento revela a candura do volume esquecido e, por fim, enxergam-se traços brancos ou acinzentados reproduzindo sua nova cidade, relembrada. Linha a linha, desenhadas sem cor, estas peças se fazem pela destruição do que antes era uma fotografia. O artista contemporâneo subverte a coerência fotográfica, que antes obedecia às regras da mimese do mundo, ao desenhar com suas raspagens. A tradição dos trópicos, o artista parece reiterar, também incorpora seus esquecimentos sem descartá-los completamente.

Conquanto os Apagamentos explorem operações plásticas dentro da tradição do desenho, os Encobrimentos separam-se desta tradição. Esta parte da série procura referenciais mais próximos da pintura do início do século XX. Na atitude de criar o impedimento da paisagem, desta vez com negrume, o artista reencena certa vontade moderna de apagamento. Sabe-se que as revoluções, culturais ou políticas, buscam romper as tradições de seu tempo: a proposta artística moderna era o apagamento de toda tradição e a produção de uma nova cultura, livre das amarras seguras dos costumes.

Consciente dos manifestos modernos, ou talvez fruto de sua falência, Thiago reapresenta São Paulo preenchida por prédios monolíticos em seus Encobrimentos. O artista acaba por provocar a percepção do tempo invertida ao contrapor dois momentos históricos. Na cidade antes da chegada da modernidade (fotografada por Militão), Thiago tolhe as arquiteturas para criar volumes. A separação entre o referente fotográfico (prédios) e a tinta como puro volume (sem carga de representação) é uma discussão que atravessou o século XX. Se, para se observar as interferências, é necessário entendê-las a partir de uma figura, então é prudente pensar-se partindo do referencial arquitetônico: afinal, a série Apagamentos/Encobrimentos é permeada pela relação entre os indivíduos, as proporções das arquiteturas e as dimensões urbanas.

Os volumes negros insinuam arquiteturas desconstruídas - premissa explorada em projetos como o Holocaust-Mahnmal em Berlim, projetado pelo arquiteto Peter Eisenman. A pesquisa de Thiago relaciona-se com as arquiteturas monolíticas e descontinuadas da planta de Eisenman por procurar na arquitetura mais que um volume vazio para a habitação. Uma e outra proposta elaboram, através da forma da edificação, a relação psíquica e material do indivíduo e seu entorno. Ao expor a São Paulo pré-moderna às arquiteturas nascidas do confronto com os traumas produzidos ao longo do século XX, Thiago reitera também a importância das propostas plásticas modernas para o mundo contemporâneo. O visitante, para enredar-se na trama tecida pelo artista, necessita antes conhecer o presente, para seguir de encontro ao passado.

A continuidade de processos na pesquisa foi ressaltada na expografia semelhante das salas. Tornar a primeira vista da exposição uma espécie de síntese foi um guia conceitual para a colocação da instalação Ruído (2016) diante de cinco imagens da série Apagamentos/Encobrimentos. O monumento cheio de lacunas criado por Thiago é uma reunião de moldes tirados pelo artista do detalhamento arquitetônico da área que recebe a obra. O trabalho, desta maneira, reverbera a sala que o hospeda e relaciona os adereços da sala com a dura arquitetura do prédio quase secular da Caixa Cultural na Sé.

O passado, esquecido, encontra uma representação espacial com os Apagamentos, para depois avultar-se em Encobrimentos. São movimentos cíclicos, como os de uma canção, assumidos comumente em grandes cidades. Na série de Thiago Navas, esses movimentos citadinos cotidianos tornam-se uma meditação capaz de produzir um relato que nem sempre fará sentido. Junto à obra Ruído, colocada no hall, encontramos uma narrativa a se perceber por seus detalhes.

Uma quase canção a se desenrolar no espaço branco do papel arranhado, Ruído destaca os adereços, aquilo de mais comum – e, alguns dirão, desnecessário – por negar matéria à forma. Esta síntese esbranquiçada, disposta quase à porta do prédio, pede pelo pensamento. O monumento, criado através do decalque das peças ao redor, destaca a distância entre um projeto e uma construção. Uma música cuja cifra não pode ser lida, uma história que perdeu seu sentido para os viventes.

A candura do monumento é também a explicitação de seu material e, mais que isso, a cor branca é parte do léxico criado pelo artista. O gesso que reveste o prédio, depois de encarada esta peça, revela finalmente a distância entre a assepsia de um projeto e as entranhas de uma edificação.

Do monumento lacunar às fantasmagorias das fotografias retrabalhadas e de volta, a exposição Apagamentos procura estimular seus visitantes a repensar sua cidade. Ao notar a presença dos prédios diante do esquecimento urbano, o artista nega o fantasma da cidade antiga ao dar vida àquilo que se condensou em imagem. Assim como a música é aproveitada pelos ouvidos e não pelos olhos, as imagens de Thiago Navas instigam seu observador a relacionar-se plenamente com a cidade de São Paulo. A exposição Apagamentos, por sua vez, elege momentos silenciosos e intensos para explorar a imaginação do visitante, as ações retratadas e o esquecimento natural. Se para ouvir uma sinfonia é necessário compreender o valor do silêncio, para enxergar a obra de Thiago Navas é necessário conceber no ato de se olhar certo aspecto imaginativo. Porque a vontade de produzir música, para Thiago Navas, está encarnada no arbítrio de retratar o invisível.

1. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio: o minidicionário da língua portuguesa. Curitiba: Posigraf, 2004.

2. Militão Augusto de Azevedo, organizado por Fraya Frehse, Heloisa Barbuy e Rubens Fernandes Junior (São Paulo, Cosac Naify, 2012).

3. Não há grande invento ou intervenção humana nessas áreas. Ao menos nenhuma grande intervenção material, de qualquer forma.

4. O lápis deposita grafite nos vincos que cria.

5. Que não é aquele ausente de impressão, sendo as fachadas dos prédios demolidos no século que separam artista e fotógrafo.

6. Apresentada no Hall de recepção do prédio.

7. Cuja porosidade é criada a partir do mobiliário que dá vida ao prédio e seu coração pulsante, o hall.

"Som (substantivo masculino)

1. Fis. .Fenômeno acústico: propagação de ondas sonoras produzidas por um corpo que vibra em meio material elástico.

2. Sensação auditiva criada por este fenômeno; ruído

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